Da ausência
Disse-te que, cá dentro, a ausência pior é a minha e achaste que eu estava a falar de alguém. Sei que percebeste, lá no fundo, o que te dizia. Afinal, hoje somos mais iguais do que quando nos amávamos. O mesmo olhar vazio; as mesmas mãos trémulas; a mesma voz grave e sem força; a mesma piada à ponta da língua sempre-a-postos-pra-enganar.


Mas a ausência, dizia eu.


Não és tu que faltas, como na música do Bruce. Sim, aquele que cantava as ruas de Filadélfia, "na na na na, na na na na"... Sou eu.
Deixa-me que te explique.

"Sentado
Encostado à banca da cozinha
Absorto a acender mil vezes o isqueiro
Reduziste-me afinal a estes passos desencadeados, todas as minhas dúvidas do momento estão aqui, sento-me, levanto-me, para quê sentar-me levanto-me para ir para onde, o cão sempre atrás de mim quer-me parecer que te procura num gesto que eu possa fazer, o cão que não sabe nunca soube dizer o teu nome mas para quem toda a vida eras tu, seremos afinal tão diferentes é o que me resta perguntar quando afinal como ele, tal como ele, também já não sei dizer o teu nome, falta-me o pormenor que te define mesmo, um detalhe para que sejas absolutamente
exacta, clara
a inveja que tenho de quem te sabe traduzir."

Rodrigo Guedes de Carvalho
A casa quieta


Percebes agora? Ela sou apenas eu. Ele sou eu também. E a inveja que tenho de quem me sabe traduzir.


"You're Missing"
Bruce Springsteen
no giradiscos





[não posso deixar de apontar, com grande alegria e inexplicável orgulho, o facto de ninguém ter partido do princípio de que a música "Conta Outra", de Maria Rita, era dedicada a algum moçoilo que, eventualmente, me tenha partido o coração. Das duas uma: ou aprenderam de vez, ou anda tudo muito tímido... ah! e está tudo bem com a anca, obrigada!]